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SALOMÉ LOPES COELHO / Sonho e yãkoana: hipóteses para pensar o cinema como travessia de mundos

SALOMÉ LOPES COELHO / Sonho e yãkoana: hipóteses para pensar o cinema como travessia de mundos

Quando começámos a ler colectivamente[1] A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert[2], no contexto da rede de investigação “Cosmoestéticas do Sul”, vinha de dedicar os últimos anos a desenvolver a hipótese do cinema como pegada -traço, recriação- da travessia ritual de mundos. Apesar da resistência, foi difícil limitar a intrusão dessa investigação na leitura, não apenas pela proximidade temporal de ambos os estudos, mas sobretudo pelos seus pontos de contacto -com destaque para as cerimónias xamânicas, o êxtase do consumo ritual de plantas alucinógenas e as visões. Confrontada com os territórios desbordantes de A queda do céu, de imagens, sentidos e sensações inabarcáveis, talvez o diálogo com a investigação recente tenha aparecido como a forma possível, ainda que não desejada, de encontrar um chão relativamente firme, na vertigem da queda.

À medida que me adentrava no texto e na sua discussão conjunta, a hipótese inicial do cinema como travessia de mundos foi perdendo a especificidade do meio. Com a leitura, foi crescendo a pergunta pelo cinema já não propriamente como pegada da passagem entre mundos, mas como travessia em si mesma, colocando em relação, não sem fricção, as visões xamânicas provocadas pela ingestão ritual da yãkoana, o sonho e a experiência cinematográfica. Não se trata de encontrar padrões ou promover equivalências, mas de abrir (ou manter abertas) vias de discussão que surgem na/da intersecção de ambas as experiências. Este texto procura revelar os caminhos dos questionamentos que se dão nessa zona intervalar e, parafraseando a cineasta Trinh T. Minh-Ha[3], trata-se não tanto de um gesto de pensar sobre, mas de pensar perto de A queda do céu.

Começarei por abordar a dimensão mágica da imagem, a partir dos estudos da arte parietal paleolítica, colocando-a em diálogo com as imagens cinematográficas, entendidas como sobrevivências do êxtase da travessia ritual de mundos. Para esta formulação, parto sobretudo dos estudos arqueológicos[4] que entendem a arte parietal como sendo essencialmente xamânica. Num segundo momento, pretendo colocar em diálogo a hipótese do cinema como travessia ritual de mundos com o chamado “cinema da floresta”[5], em que se estabelece uma relação entre as visões suscitadas pelo consumo de plantas alucinógenas e a experiência geral do cinema. Problematizo este enunciado partindo da afirmação de Kopenawa de que o cinema é sonho, bem como do entendimento da imagem em A queda do céu -muito mais complexo e abarcando movimentos que o “cinema da floresta” não permite vislumbrar. Num terceiro momento, o xamã e a câmara são abordados como veículos transfronteiriços de passagem entre mundos, em articulação com a noção de ciné-transe.[6] Na parte final deste texto, que certamente constitui mais um início do que uma conclusão, detenho-me na concepção do cosmos como um cinematógrafo, apontando para um terreno onde o pensamento sobre a imagem, o cinema e a experiência xamânica, no tempo do sonho ou da yãkoana, possa continuar a complexificar-se.

A dimensão mágica da imagem

A arte do paleolítico é um campo vasto que está sujeito a constantes actualizações científicas com base em novas descobertas ou sujeito a novas hipóteses interpretativas dos materiais já disponíveis.[7] David Lewis-Williams e Jean Clottes propuseram um novo enquadramento para as imagens desse período, entendendo a arte paleolítica como resultado de cerimónias xamânicas, executadas sob o efeito do transe. Os arqueólogos concluíram pela existência de uma sociedade paleolítica organizada em torno de práticas rituais xamânicas, baseadas no desenvolvimento, controlo e exploração de estados de consciência. Por um lado, analisaram os estados de consciência alterada, a partir de estudos neuropsicológicos, tendo identificado “três fases” de figuras, isto é, verificando que cada fase corresponde a três tipos de visões/figuras.[8] Por outro lado, analisaram a arte parietal, das grutas ou a céu aberto, em várias partes do mundo, e concluíram que as pinturas correspondiam às três fases de consciência alterada, identificadas no estudo neuropsicológico.

As figuras pintadas à superfície das paredes rochosas seriam, pois, registos das visões extáticas, mas também formas de penetrar “o mundo espiritual oculto detrás do véu da pedra”[9] e de “abrir a rocha em que foram gravadas”, como refere o filósofo José Gil[10], na esteira de Clottes e Lewis-Williams. Afirmam estes autores que uma das características mais comuns da arte paleolítica é o aproveitamento dos relevos das cavernas. As pinturas partem da própria superfície da rocha e dos seus relevos, para desenhar rostos ou cabeças de animais que parecem olhar quem as encara, estando o seu corpo ocultado por detrás da rocha, como se estivessem a sair dela. Esta ideia de aproveitamento do espaço leva os referidos arqueólogos, e Gil a partir deles, a concluir que as imagens não seriam meras “representações” das visões do xamã -não as imitam-, antes implicando uma “acção recíproca entre o seu criador e os contornos naturais à superfície da parede”, pelo que o xamã-artista recriava as suas visões e fixava-as na parede, “considerada uma membrana que tinham de atravessar para se materializar”.[11]

Esta interacção dava-se especialmente por via do toque e do movimento da luz, sendo que as imagens nasciam de um “claro-obscuro oscilante” que “sugerem dependências recíprocas”, como relatam Clottes e Lewis-Williams.[12] As imagens que apareciam pelo jogo de luzes flutuavam diante do xamã que se esforçava por tocá-las e materializá-las. Esta projecção não se referia apenas às imagens criadas pela luz proveniente de uma chama em movimento, mas também se refere às visões mentais, às impressões lumínicas no xamã, projectadas nas paredes, cuja forma se procura fixar através da pintura. A criação de imagens funcionava, literalmente, por projecção. O jogo de luz-obscuridade adquiria, como adquire no cinema, um papel central.

Não obstante a materialização das visões acontecer sobretudo durante um estado de consciência alterada, Clottes e Lewis-Williams referem que a maior parte das vezes ela se deu já depois do estado de transe. Nesses casos, os xamãs usavam os traços anteriormente gravados e pintados nas paredes para “suscitar e reencontrar as visões (…) e recriar as suas experiências alucinatórias”.[13] O rasto aparece simultaneamente como iniciador e como registo de um processo. Para Gil, estas conclusões contribuem para caracterizar a imagem como tendo um carácter mágico, desde o seu aparecimento:

[A]s primeiras imagens fabricadas pelo homem de que há notícia (Paleolítico Superior, 40.000 anos A.P.) eram percepcionadas como envoltas num espaço que elas próprias criavam e em que se integravam, mas que definia um mundo espácio-temporal diferente do mundo comum profano. (…) Esta característica mágica da imagem nasceu com ela.[14]

Esta dimensão mágica, associada à travessia de mundos, sobrevive no presente das imagens cinematográficas, sempre de maneiras distintas, segundo a hipótese que desenvolvi noutra oportunidade, em diálogo com a filmografia de cineastas como Raymonde Carasco ou Yvonne Rainer.[15] O pathos êxtase, e certas fórmulas a ele associadas,atravessa os tempos e regressa de variadas formas, no singular presente do olhar. Na medida em que a imagem cinematográfica porta, transporta e recria o êxtase da travessia ritual de mundos, ela releva-se na sua dimensão de sepultura sensorial de um contacto, seguindo Didi-Huberman[16], ao mesmo tempo que se apresenta como a possibilidade de abrir e atravessar mundos. As imagens do cinema afiguram-se como imagens gravadas à superfície da caverna -memória (imemorial) do ritual do atravessamento- e, por outro lado, são também um gesto que procura resgatar o atravessamento em si mesmo.

O cinema da floresta

O antropólogo Peter Gow desenvolveu uma “etnologia fenomenológica do cinema”[17], no Alto Ucayali, Amazónia peruana, identificando uma analogia entre o cinema e a ayahuasca.[18] A ayahuasca é tanto o nome de uma liana (Banisteriopsis caapi) como o nome da preparação dessa planta (bebida fermentada), com propriedades alucinógenas, sendo comum o seu consumo na Amazónia. O seu uso é sobretudo espiritual e medicinal, feito no âmbito de uma cerimónia conduzida pelo xamã, entendida como ritual de cura. A propriedade central da planta, para a população de Alto Ucayali, é fazer ver o que não se vê de outra forma. Apenas a ingestão de ayahuasca permite “acesso visual direto à verdadeira natureza da aparência visível, como as cidades e os corpos dos seres poderosos”.[19] As alucinações visuais são, portanto, uma das dimensões mais relevantes da planta e é neste ponto que se estabelece uma analogia entre o cinema e a ayahuasca.

Para a população do Alto Ucayali, refere Gow, a ayahuasca é o “cinema da floresta” dada a proximidade entre a experiência geral do cinema e as visões provocadas pela ingestão ritual da planta. Esta aproximação dá-se em três pontos principais, segundo o antropólogo: 1) As imagens do cinema e as imagens da ayahuasca permitem ambas ver o que de outra forma não seria possível, permitindo a ayahuasca o acesso à verdadeira identidade visual da floresta, e o cinema permite o acesso visual a diferentes e distantes lugares e temporalidades; 2) As imagens ou visões, em ambos os casos, são entendidas como exteriores, possuindo uma origem autónoma, não sendo possível determinar ou gerir o seu surgimento, desaparecimento ou intensificação. O xamã, e apenas ele, tem o poder de conduzir o fluxo de imagens com canções, mas não de produzir tais imagens; 3) Tanto as visões do cinema como da ayahuasca se aproximam no que as distingue das imagens do sonho, já que estas últimas não seriam criadas num estado consciente. Quem ingere ayahuasca está sempre consciente, mesmo que a consciência seja claramente diferente vendo um filme ou tomando ayahuasca.

Tomo estes três tópicos avançados por Gow como pontos de partida para pensar a relação entre as visões em contexto ritual xamânico e as imagens do cinema. A formulação de Gow parece basear-se numa manietada concepção das visões suscitadas pela ayahuasca, ficando aquém da dinâmica de produção e do movimento das visões e imagens descritos noutros contextos de consumo ritual de alucinógenos. Refiro-me especificamente ao entendimento da imagem e das visões de xamãs yanomami, relacionadas com a ingestão da yãkoana, tal como nos é dado a conhecer por Kopenawa e Albert.[20]

Pela sua complexidade, o entendimento da imagem em A queda do céu exige um desenvolvimento que o espaço deste texto não permite; no entanto, não é possível abdicar de abordá-lo, ainda que tangencialmente. A grandes rasgos, na cosmologia yanomami, todos os seres possuem uma imagem-utupë[21] considerada a sua “imagem corpórea/ essência vital”, uma imagem interna que remete para a forma-imagem que os seres tinham no tempo da sua criação mítica. Apenas a visão xamânica permite o acesso a estes seres-imagens (por definição, infinitos), que o xamã “chama”, “faz descer” e “faz dançar”, tal como aos espíritos auxiliares, os xapiri.[22] A apresentação dos xapiri, e o conhecimento que eles possibilitam, dá-se esteticamente: dançando, cantando melodiosa e magnificamente, “resplandecentes de luz” (p.185), “muito perfumados” (p.112), “cobertos de tinta fresca de urucum e enfeitados com pinturas de ondulações, linhas e manchas de um preto brilhante” (p.112). Nem todos os xapiri são magníficos e belos, “alguns têm os olhos atrás da cabeça” (p.113) e podem ser monstruosos ou maléficos. Continua Kopenawa descrevendo os xapiri:

os seus braços são enfeitados com muitos penachos de penas de papagaio e caudais de arara fincadas em braçadeiras de belas missangas lisas e coloridas, com muitas e muitas caudas de tucano e despojos multicolores de pássaros wisawisama si pendurados. Têm um porte muito imponente! Foi Omama que os ensinou a se enfeitar assim. Quis que fossem magníficos para vir nos mostrar sua dança de apresentação. (p.112)

O próprio xamã torna-se “pessoa espírito” (xapiri th ë), passando a agir (xapirimuu) e a deslocar-se (xapiri huu) como espírito, vendo então o que eles veem (p.659). Trata-se de ver através do invisível. Nas palavras de André Brasil, “os xamãs não apenas veem os espíritos, mas são vistos por eles, para então verem por meio de seus olhos; imagens, portanto, que veem e que possibilitam ver”.[23] Após as suas danças de apresentação, os xapiri “dão a conhecer o desenho da floresta, para que possamos protegê-la” (p.142), pelo que podemos dizer deste conhecimento que, para além da dimensão estética acentuada, possui uma missão ética partilhada. A imagem é tida como activa e não-representacional; interpreta antes de ser interpretada, ela vê-nos para que a possamos ver, é “empiricamente não-icónica e não-visível”[24], desdobrando-se “fractalmente em devires e metamorfismos constantes e que tem o poder de especular”.[25] Para aceder à imagem da “terra-floresta” (urihinari) (p.476), os olhos do xamã devem primeiro morrer, isto é, uma certa forma de ver deve desaparecer, para dar lugar a uma visualidade outra. A experiência da visão envolve, como tal, a destituição de uma determinada modalidade do ver: é uma visão entre o sensível e o inteligível, o corpóreo e o espiritual -como poderíamos dizer das imagens no território do sonho, ao qual voltarei adiante.

“Devir outro”, título da primeira parte de A queda do céu, não faz apenas referência a este processo de tornar-se xamã[26], mas sobretudo ao devir outro na ontologia relacional yanomami. À semelhança de outras cosmologias ameríndias, as/os Yanomami consideram que várias espécies partilharam primordialmente uma essência humana que, depois de determinados eventos, se transformaram nas espécies que hoje existem, com corpos distintos, mas mantendo a perspectiva humana. O mundo é, assim, entendido como estando habitado por diferentes espécies de entes, humanos e não-humanos, que o apreendem a partir de pontos de vista distintos, mas sempre mantendo a visão de si mesmas como humanas. Neste sentido, a condição original comum a humanos e animais não é a animalidade, mas sim a humanidade. Eduardo Viveiros de Castro explicita que, em condições habituais, no perspectivismo ameríndio, os humanos vêem-se a si mesmos como humanos, aos animais como animais e aos espíritos como espíritos, se forem capazes de os ver. Por outro lado, os animais predadores (como o jaguar) vêem os humanos como animais de presa (animais que indígenas caçam), ao passo que estes animais de presa vêem os humanos como espíritos ou como animais predadores.[27]

Como bem sumaria Rodrigo Lacerda, no contexto da sua investigação sobre animismo e cinema Mbya-Guarani, uma consequência importante do perspectivismo ameríndio é a concepção relacional de tudo quanto existe, sendo que as pessoas e as coisas não podem ser conhecidas pela sua aparência; os seus corpos são produzidos constantemente, através de relações e acções: “as identidades das pessoas, animais e coisas não são definidas pelos seus atributos físicos ou biológicos, são antes percebidos através das suas posições dentro de uma rede de relações sociais”.[28] O xamã é aquele que pode mover-se através das diferentes posições, agências que habitam o cosmos, sendo capaz de ver o ponto de vista do outro; ele é o único que tem “a possibilidade e a capacidade de viajar entre as diferentes perspetivas sem perder o seu ponto de vista”.[29] Deste modo, ele assume uma função de “diplomacia cósmica, dedicada à tradução entre pontos de vista ontologicamente heterogéneos”.[30]

Cinema é sonho (colectivo)

Outra diferença significativa entre a descrição de Gow, por um lado, e de Kopenawa e Albert, por outro, é relativa às imagens do sonho. Gow identifica uma clara oposição entre as visões de ayahuasca e dos filmes às do sonho, ao passo que essa oposição adquire outros matizes, em contexto ritual yanomami. Ainda que não haja uma referência directa ao cinema n’A queda do céu, podemos conhecer a perspectiva de Kopenawa a propósito de A Última Floresta (2021), longa-metragem realizada por Luiz Bolognesi e escrita em colaboração com Kopenawa, que combina observação documental e encenação de eventos relevantes na cosmologia yanomami. Diz Kopenawa: “Luiz, cinema é sonho, né? Então você tem que ir à minha aldeia e dormir umas noites lá. Temos que falar dos nossos sonhos para encontrarmos juntos essas histórias.”[31] O cinema não é simplesmente comparado ao sonho; o cinema é sonho. Para fazer um filme sobre a aldeia Yanomami, há que dormir lá, há que sonhar e há que conversar sobre os sonhos, para encontrar colectivamente as histórias.

O cinema é assim entendido como sendo sonho, mas também estendido à discussão dos sonhos, tratando-se de um processo de montagem de conteúdo onírico, a partir da partilha e da discussão colectiva. Neste sentido, o cinema surge como um sonho partilhado. Trata-se de sonhos que são discutidos colectivamente, com vista a uma montagem das imagens, mas também podemos pensar este sonho na sua dimensão de desejo e missão, tal como o era para alguns autores, nas origens do cinema e da sua teorização. O cinema almejava ser a nova linguagem de um novo mundo, “universal, comum, entendida por todos”, nas palavras de Béla Balázs[32], apresentando-se como sonho -aspiração colectiva- de um mundo moderno em que todos os movimentos seriam considerados iguais, comuns, filmáveis. Do cinema esperava-se que gerasse conhecimento do que até então estava oculto ao olho humano, e suscitasse energia, desvendando as ambiguidades do mundo, mas também modos de nos comportarmos perante ele.[33] Os cinemas indígenas, designação que adquire uma pluralidade de sentidos, parecem insistir e reconfigurar a ambição política do cinema, estendendo-a à cosmopolítica, como vários estudos vêm problematizando.[34]

Kopenawa não pede apenas a Luiz para ir à aldeia sonhar, mas para ir sonhar e falar sobre os sonhos, para encontrar as histórias. “Encontrar histórias” deixa claro que não se trata de criar, mas de aceder ao que já é dado. O xamã yanomami também não diz a Luiz para ir à aldeia tomar yãkoana, como poderíamos pensar, seguindo Gow e a definição da ayahuasca como o cinema da floresta, abordada anteriormente. Kopenawa diz ao realizador para ir à aldeia sonhar. Nesse sentido, poderíamos perguntar-nos se o sonho não se prefigura como a yãkoana das “pessoas comuns”, acessível para além da hierarquia xamânica. Nesse caso, em vez de um cinema da floresta, poderíamos falar do cinema como a yãkoana dos brancos? No entanto, não é qualquer sonho que pode ser cinema, já que existem vários tipos de sonhos, dependendo de quem sonha; durante o sonho, a imagem das “pessoas comuns”, por exemplo, “nunca se afasta muito. Entre eles, apenas os bons caçadores podem sonhar um pouco mais longe.” (p.462); já os brancos “[d]ormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas ou jabutis” (p.390), ou dormem mesmo sem sonhos, “como machados largados no chão de uma casa” (p.76).

Nem sempre é evidente, ao longo de A queda do céu, qual é exatamente o lugar do sonho em relação à yãkoana.  Há alturas em que os sonhos surgem como uma espécie de ensaio das visões da yãkoana, outras em que são colocados a par, sendo sempre ambos entendidos como terrenos do conhecimento. No que se refere à sua qualidade de ensaio, o sonho pode anteceder, mas também suceder, as visões suscitadas pela yãkoana. Em criança, Kopenawa já era visitado pelo xapiri no tempo do sonho, mas este era visto como uma antecâmara da verdadeira experiência de conhecimento e poder associados à yãkoana. Antes de se tornar xamã, Kopenawa já começava a ver em sonhos o que mais tarde se materializa com a yãkoana. Como lhe foi dito pelo seu padrasto, xamã e guerreiro:

“Os xapiri estão começando a querê-lo de verdade [porque sonhou muito]. Mais tarde, quando se tornar adolescente, se quiser o poder da yãkoana, abrirei de verdade os caminhos deles para si.” (p.93)

Apesar de já sonhar muito, os caminhos dos xapiri só podem ser verdadeiramente abertos pela yãkoana. Neste sentido o sonho parece ser menos poderoso do que a yãkoana, constituindo uma antessala do conhecimento que ainda não é pleno, mas parcial. Por outro lado, o sonho aparece também como território onde as visões da yãkoana se prolongam, continuando “no tempo do sonho” (p.332), como refere Kopenawa. Não obstante, outras passagens reforçam o sonho como a morada das visões da yãkoana, o território temporal do seu acontecer, das quais destaco as seguintes:

(…) bebemos o pó das árvores yãkoana hi, que é o alimento dos xapiri. Estes então levam nossa imagem para o tempo do sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças de apresentação enquanto dormimos. Essa é a nossa escola, onde aprendemos as coisas de verdade. (p.77)

Nós, Yanomami, quando queremos conhecer as coisas, esforçamo-nos para vê-las no sonho. Esse é o modo nosso de ganhar conhecimento. Foi, portanto, seguindo esse costume que também eu aprendi a ver. Meus antigos não me fizeram apenas repetir suas palavras. Fizeram-me beber yãkoana e permitiram que eu mesmo contemplasse a dança dos espíritos no tempo do sonho. Deram-me seus próprios xapiri e me disseram: “Olhe! Admire a beleza dos espíritos! (…) Sem eles, seu pensamento não poderá entender as coisas. Continuará na escuridão e no esquecimento!” (p.465)

A yãkoana possibilita o aparecer das visões (do conhecimento) que necessita, por seu turno, de uma temporalidade específica para suceder: o tempo dos sonhos. Sublinha-se, nestas passagens, uma certa contiguidade e contaminação dos territórios do sonho e das visões da yãkoana. Não sendo exatamente a mesma, são experiências contíguas que se sobrepõem em determinados momentos, se prolongam mutuamente ou se reconfiguram. O esforço para separar totalmente as experiências, talvez não só seja desnecessário, como também contraditório com as formas de pensar, sentir e fazer que A queda do céu nos revela. Como o próprio terreno do sonho, também os limites entre as visões da yãkoana e as do sonho são indefinidos: prolongam-se em rastos de luz que não permitem identificar o início ou o fim de algo; espaços contíguos podem ser atravessados apenas por pensar nisso; há afetações e contaminações mútuas entre o corpo que dorme na rede e a sua imagem em voo; eclodem múltiplas temporalidades, brilhos, luz e escuridão, etc.

O xamã e o cinema: veículos transfronteiriços

Ao atravessar e ao ser atravessado por múltiplos modos de existências e mundos, o xamã partilha o que ouve, vê, toca, cheira, através sobretudo do canto e do movimento corporal. O xamã funciona como meio de mundos; o seu corpo sai de si mesmo para se tornar gesto[35], isto é, pura medialidade, neste caso dos cantos e dos brilhos dos xapiri. Ao mesmo tempo que atravessa mundos, o xamã faz ver e ouvir esses mundos, aos quais os restantes podem aceder por seu intermédio. Espécie de vínculo e veículo entre mundos, porque está entre eles e porque suscita essa travessia a que o acompanha, assim o xamã, mas também a câmara de filmar. Ambos parecem surgir como dispositivos relacionais, com missão diplomática: de articulação, tradução ou comunicação interespecífica, de múltiplas temporalidades, geografias e perspectivas.

O xamã coloca em relação, no seu corpo em voo panorâmico pelo peito do céu, diferentes perspectivas; muda de ângulo, acelera ou desacelera, aproxima-se e distancia-se, move-se entre jogos de luz, brilho, cor e foco, acede, transita e dá a conhecer mundos inacessíveis; as suas visões procedem por recortes, fragmentos. Podemos dizer destes modos xamânicos que se aproximam, com tudo o que os separa, dos procedimentos cinematográficos? O xamã assume diferentes perspectivas (interespecíficas), tal como a câmara tem o poder de alterar constantemente de ponto de vista e de “olhar o ambiente a partir dos olhos de uma figura diferente a cada instante”, como escrevia Balázs[36], numa altura em que as capacidades técnicas do cinema eram ainda uma novidade?

A intersecção entre as habilidades xamânicas e da câmara de filmar também foi apontada por pessoas indígenas, como dá a conhecer Ana Carolina Estrela da Costa[37], no seu estudo sobre o cinema indígena Maxakali. Afirma a autora que para alguns membros daquela comunidade, com quem trabalhou em oficinas de vídeo, a câmara era entendida como dotada da capacidade de proporcionar uma continuidade entre o visto e o não visto, “à maneira de um xamã”.[38] Esta continuidade, apontada pelos membros da comunidade Maxakali, é tanto em acto como em consequência; em acto, já que é o que está a acontecer com o xamã, ele está a entre-ver, está entre planos; em consequência, na medida em que permite que outros vejam, no corpo do xamã, a continuidade dos mundos (dos diferentes planos). Esta oficina de vídeo chamava-se “curso de pajés” ou de xamãs.[39] Quando li o título, pensei tratar-se de um curso para se aprender o ofício de xamã, em vez de designar os destinatários. Este equívoco permite associar de forma anedótica, mas sobretudo sintomática, a relação entre vídeo e xamanismo.

Consideremos agora o trabalho etnográfico e cinematográfico desenvolvido por Jean Rouch, no contexto da sua investigação de mais de 30 anos, com os Songhay-Zarma do Níger. O autor encontrou diversos cruzamentos, a diferentes níveis, entre a experiência do cinema e da “arte pública da possessão”.[40] Nas cerimónias de possessão, as pessoas em transe são designadas de “cavalos dos espíritos”, disponíveis para serem “montadas” por diversos espíritos divinos, com quem comunicam. Esses espíritos (por vezes chamados de deuses) podem ser vistos por outros, porquanto aparecem no corpo do possuído, nas formas provisórias que vai adquirindo a sua dança, sendo essa a sua forma de visualidade. A dança e a música são o acontecer do próprio transe, o registo efémero da travessia de mundos -pelos gestos, os movimentos, pela corporalidade-, ao mesmo tempo que a performa e instiga. Também aqui parece haver um encontro entre os relatos de Kopenawa e Albert, e os de Rouch, no que ao corpo como medialidade diz respeito.

Tendo filmado as cerimónias, Rouch projectou as imagens para os Songhay-Zarma. Para aqueles que tinham sido filmados como “cavalos do espírito”, essas imagens foram suficientes para estimular novamente a possessão. O antropólogo e cineasta afirma, até, que as pessoas filmadas como cavalos do espírito “reagem a esta arte de projecção visual e sonora exactamente da mesma maneira que reagem à arte pública da possessão ou à arte privada da magia e feitiçaria”.[41] As imagens tiveram o poder de suscitar a possessão, aparecendo, deste modo, o cinema como via de entrada (reentrada) na travessia. Noutros casos, a presença da câmara terá sido suficiente para iniciar a possessão. O filme surge tanto como o registo da travessia, como via de entrada a essa travessia, para quem assiste ao filme. A dinâmica do cinema (da filmagem, mas também da projecção) e a dinâmica do ritual parecem, deste modo, convergir. 

Esta intersecção entre o cinema e o ritual, o xamã e a câmara, o visível e o não visível, o mundo dos humanos e o dos espíritos, também é abordada por Bernard Belisário no contexto da análise de Hipermulheres (2011), filme do colectivo de cinema Kuikuro que coloca em cena os preparativos da aldeia Kuikuro Ipatse para o ritual feminino Jamugikumalu, do Alto Xingu. Ao identificar uma semelhança entre a modulação dos corpos das mulheres e a modulação da câmara, Belisário defende que o ritual funciona como um sistema de ressonâncias cósmico que coloca em relação visibilidades e invisibilidades, espaços e tempos distintos:

A modulação dos corpos (e da câmera) em cena é o traço visível e audível do campo de intensidades e afecções em jogo no ritual. O que era invisível e inescrutável aos seres humanos ordinários é dado a ver e ouvir nessas performances. O que não significa que o invisível se torne visível de um modo que passaríamos a ver as almas, os mortos, os espíritos e os animais. Mas que, por uma espécie de dobragem, o que vemos e ouvimos em campo é também o que acontece no fora-de-campo.[42]

A dança -dos corpos, da câmara- é, nesse contexto, o aparecer gestual da travessia. Tal como a mão do xamã regista a travessia e procura, em simultâneo, abrir a rocha à superfície da qual se instala, como descrito por Clottes e Lewis-Williams em relação às cerimónias do Paleolítico Superior, também a dança ou o canto consistem em estar “entre” mundos, nas cerimónias filmadas por Rouch ou nos rituais Kuikuro. Registo e processo, rasto e suceder parecem indistinguir-se. Rouch dá um exemplo paradigmático desta relação entre o ritual e o cinema, a partir da experiência que está na origem do seu filme Tourou et Bitti. Les Tambours d’Avant (1971). O cineasta foi convidado a filmar uma cerimónia que já decorria há três dias, sem que ninguém entrasse em transe. Ao quarto dia, depois de várias horas sem que a possessão se iniciasse, decide mesmo assim começar a filmar, na companhia do técnico de som Moussa Amidou. Caminhando, de câmara em mão -marca do seu cinema directo-, Rouch filmou um só plano sequência que se inicia com a filmagem dos animais que poderiam vir a ser sacrificados, para logo filmar a orquestra cerimonial, até que, a determinado momento, a música se detém. Apesar de considerar que se tinha desistido de esperar que a possessão ocorresse, decide, mesmo assim, continuar a filmar e é justamente aí que se inicia a possessão:

Olhando para este filme agora, penso que a filmagem foi o que destravou e acelerou o processo de possessão. Não me surpreenderia se ao mostrar o filme aos padres de Simiri, ficasse a saber que tinha sido o meu próprio ciné-transe a desempenhar um papel de catalisador aquela noite.[43]

Ciné-transe seria, então, o nome dado a esse instante quase religioso de possessão, no qual o cineasta, a equipa e o elenco se tornam “cavalos do espírito” do cinema, permitindo que os seus sentidos sejam mediados pelos dispositivos cinematográficos. João Mário Grilo qualifica de “mágico” o momento em que Rouch decide não parar de filmar, “um momento de transe que permite a Rouch organizar os seus movimentos -o seu ‘ballet’- como se estivesse numa completa articulação com uma força superior, como se ele fosse um dos cavalos sobre o qual os deuses escolheram descer para o ritual”.[44] A partir de esta noção de ciné-transe e da experiência a ela subjacente, Grilo afirma que o cinema se posiciona como “um veículo fronteiriço [borderline] entre diferentes mundos que também se oferece a si mesmo como uma oportunidade para passar entre eles”.[45]

Para o entendimento que Rouch tem do cinema contribui, em grande medida, o cinema directo (cinéma-direct),de Robert Flaherty, e o cinema-verdade (kinopravda), de Dziga Vertov.De Flaherty, Rouch destaca a invenção de uma “câmara participante” -o actor principal. De Vertov, Rouch salienta o poder da câmara -o olho mecânico-, bem como da montagem -organizadora dos momentos da estrutura da vida- em articular uma verdade inacessível ao olho humano.[46] O cinema do futuro é, para Rouch, aquele que “junta o sonho de Vertov e Flaherty”, um “cinema-olho-ouvido” e uma câmara de tal modo participante que passa “automaticamente para as mãos daqueles que até então estiveram sempre em frente às lentes”.[47] O cinema aparece, pois, como aquele que é capaz, pela câmara que tudo vê, bem como pela montagem que tudo revela, criar uma nova forma de ver que constrói a sua “verdade peculiar” ou uma “verdade fílmica” (cinéma-verité), isto é, uma outra articulação entre o dizível e o visível dependente do cinema e do gesto de filmar.[48]

O projecto Vídeo nas Aldeias, coordenado por Vincent Carelli, cumpre este sonho político no território da terra-floresta[49], ao promover formação audiovisual de indígenas, ao disponibilizar equipamentos para produção própria, bem como ao criar redes de distribuição dos materiais produzidos:

Ao invés de simplesmente se apropriar da imagem desses povos para fins de pesquisa ou difusão em larga escala, esse projeto tem por objetivo promover a apropriação e manipulação de sua imagem pelos próprios índios (sic). Essa experiência, essencial para as comunidades que a vivenciam, representa também um campo de pesquisa revelador dos processos de construção de identidades, de transformação e transmissão de conhecimentos, de formas novas de auto-representação.[50]

Os cinemas indígenas parecem tanto insistir como reinventar a missão política do cinema. O deslocamento do lugar de filmado para o lugar de quem filma altera radicalmente o próprio cinema, reinventando modos de filmar, de montar e de contar histórias, implicando também a reconfiguração da gramática do cinema.[51] Um estudo que procure pensar as intersecções entre o cinema e as visões xamânicas encontra nos cinemas indígenas um terreno incontornável do seu suceder. Será, certamente, uma via de continuidade aberta pela leitura de A queda do céu, na sua relação com o cinema.

Cinematógrafo cósmico

Poderíamos, chegados/as aqui, destacar três possíveis intersecções entre as visões xamânicas provocadas pela ingestão ritual da yãkoana, o sonho e a experiência cinematográfica. Essas intersecções dizem respeito i) ao acesso a uma verdade de outro modo inalcançável, ii) à medialidade entre mundos, com função diplomática e iii) aos modos de experiência xamânica como modos cinematográficos da experiência que ocorrem por outros meios. Estes eixos trazem consigo várias perguntas -que certamente não se esgotam nas que aqui formulo-, das quais destacaria as que se seguem.

Poderíamos perguntar-nos se a verdade peculiar, de que falam cineastas e teóricos do cinema, ecoa, em tom próprio, na yãkoana e no acesso à visualidade da terra-floresta que esta permite. Se o cinema permite aceder a verdades de outra forma inalcançáveis, podemos identificar aí uma intersecção entre essa experiência e o consumo ritual de yãkoana? Se para fazer um filme é necessário sonhar e montar colectivamente o conteúdo onírico, e se Kopenawa designa o cinema de sonho e não de yãkoana, podemos perguntar-nos se o sonho se prefigura como a yãkoana das “pessoas comuns”, acessível para além da hierarquia xamânica. E, nesse sentido, em lugar de um cinema da floresta, poderíamos falar de um cinema como a yãkoana dos brancos?

Ao mover-se por diferentes posições e perspectivas dos vários modos de existência, o xamã tem a possibilidade de ver e de traduzir o ponto de vista do outro. O corpo do xamã torna-se gesto, pura medialidade de travessia de mundos, permitindo a quem o acompanha aceder à continuidade entre os mundos visíveis e não visíveis, humano e mais do que humano. Atravessa, é atravessado e oferece a possibilidade de atravessar mundos: assim o xamã, mas também o cinema? Se a câmara de filmar e o xamã partilham, com as devidas distâncias, a possibilidade de se oferecerem como gesto da travessia de mundos, poderemos encontrar, também aí, um intervalo entre o cinema e o xamanismo? Um cinema que procura constituir-se como linguagem comum que permitiria o acesso e colocaria no mesmo plano diferentes seres e agentes do cosmos?

Com estas perguntas, que se foram dando em diálogo com a leitura e discussão d’A queda do céu, o cinema solta-se da especificidade do meio -o filme, a sala, o celulóide, as paredes das cavernas. Todo o cosmos devém cinematógrafo, ou um metacine, como sugere Sebastian Wiedemann a partir de Henri Bergson e Gilles Deleuze. Um cosmos que, como o cinema, é composto por imagens em si e para si mesmas, em perpétuo movimento de acção e reacção umas sobre as outras, feitas de luz e de sombras, que não esperam nem dependem de um olhar humano para existirem. O cosmos, neste sentido, compreende-se como uma imensa máquina de projecção de imagens luminosas que se propagam por todas as partes, independentemente de aparecer um olhar ou um ecrã, e que apenas necessitam de uma opacidade que as possa reflectir e revelar.

As imagens podem, assim, ser entendidas não como algo que se vê, mas como algo que se move perpétua e independentemente de uma consciência. A luminosidade está nas coisas em si, antes de qualquer sujeito que as olhe ou consciência que supostamente as ilumine. Como refere Bergson, “a fotografia, se existe, já está tomada, tirada no interior das coisas”[52], o olho está no interior. Em A queda do céu, também surge uma associação entre a interioridade e a fotografia. A imagem-utupë é descrita justamente como a fotografia dos seres, o seu interior: “Todos os seres da floresta possuem uma imagem utupë. (…) São elas o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos animais que caçamos. (…) São como fotografias destes. Mas só os xamãs podem vê-las.” (p.116). Para que se revele, esta fotografia interior necessita de um ecrã (ou de um xamã?), um obstáculo à luz que a reflecte. As “imagens vivas” são aquelas que funcionam precisamente como opacidades que reflectem a luz. Estas imagens vivas são, para Bergson, centros de indeterminação, zonas intervalares que descontinuam a acção-reacção de umas imagens sobre outras, introduzindo um desfasamento ou atraso que impede predizer as acções (justamente porque implicam uma selecção e execução).

Neste seguimento podemos perguntar-nos pelo cinema que, nas palavras de Wiedemann, está sempre disposto “a acontecer por outros meios, a se multiplicar por inúmeras e impensadas superfícies, a ser espírito e espiritual por possuir corpos demais que desbordam qualquer forma, até quase explodir e fazer colapsar o plano do audível e visível”?[53] Um cinema sempre disponível para acontecer por outros meios que demonstrem a sua eficácia, tornando “mais potente a performance cosmopolítica que faz do mundo uma nascença incessante e da imagem algo sempre por vir?[54] Em lugar de pensar uma possível aproximação entre a experiência geral do cinema, as visões geradas pelo consumo ritual de plantas alucinógenas e a recriação dessas visões, talvez possamos continuar a perguntar-nos como os modos de experiência xamânica se podem entender como modos cinematográficos da experiência que ocorrem por outros meios, no tempo do sonho ou da yãkoana, mas insistentemente como gesto da travessia de mundos.

Salomé Lopes Coelho

Bibliografia

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[1] Este texto resulta da leitura colectiva de A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, publicado em português em 2015. A leitura decorreu durante 2020 e 2021, no contexto da rede de investigação “Cosmoestéticas do Sul”, integrado por Carla Milani Damião, Gabriela Milone, Guadalupe Lucero, Noelia Billi, Paula Fleisner, Pedro Hussak e eu própria (Universidades da Argentina e do Brasil). Em novembro de 2021, partilhámos as nossas leituras no seminário Sonho, mercadoria, mundo: três hipóteses para pensar “A queda do Céu” que dá origem ao dossiê no qual este artigo se insere.

[2] Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, Trad. Beatriz Perrone-Moisés, Companhia das Letras, São Paulo, 2015.

[3] No seu filme Reassemblage (1982).

[4] Jean Clottes e David Lewis-Williams, Los chamanes de la prehistoria, Trad. Javier López Cachero, Ariel, Barcelona, 2010.

[5] Peter Gow, “Cinema da Floresta. Filme, Alucinação e Sonho na Amazônia Peruana”, Revista de Antropologia, Vol.38, N.2, 1995.

[6] Jean Rouch, “On the Vicissitudes of the Self: The Possessed Dancer, the Magician, the Sorcerer, the Filmmaker, and the Ethnographer” In Steven Feld (Ed.), Ciné-Ethnography, University of Minnesota Press, Minneapolis, 2003.

[7] Pela plausibilidade e amplo reconhecimento das suas argumentações, alguns dos autores que mais se destacaram neste âmbito são Salomon Reinach, o conde Bégouen, André Leroi-Gourhan e Annette Laming-Emperaire.

[8] Podemos resumir as diferentes fases da seguinte forma, de acordo com Jean Clottes e David Lewis-Williams, op. cit., p.17-21. À primeira fase correspondem figuras geométricas como pontos, ziguezagues, grelhas, linhas onduladas e, menos frequentemente, curvas paralelas. Essas formas têm cores vivas que cintilam, que se movem, alargam e contraem, estremecem, etc. Com os olhos abertos, adquirem um aspecto luminoso e projectam-se sobre qualquer superfície. No segundo estado de alteração de consciência, decorre um esforço de racionalização das percepções geométricas do primeiro estado, transformando-as em objectos com significado (por exemplo, os ziguezagues passam a ser escamas de uma serpente, sendo a serpente o objecto com significado). Passa-se para o terceiro estado atravessando um redemoinho cujas laterais são feitas de grelhas que derivam do primeiro estado, e ao final do qual existe uma luz. Essas figuras geométricas estão presentes ao longo dos três estados, mas sobretudo na periferia das figuras. É ainda no remoinho que o xamã começa a alucinar as primeiras formas humanas, de animais ou outros elementos, mas é no final dessa espécie de túnel que o xamã “se encontra no estranho mundo do transe: os monstros, os humanos e o entorno são intensamente reais” (p.20). Estas fases não são totalmente separáveis umas das outras, uma vez que se encontram num continuum, podendo sobrepor-se ou saltar alguma das fases, por exemplo.

[9] Jean Clottes e David Lewis-Williams, Los chamanes…op. cit., p.94.

[10] José Gil, Caos e Ritmo, Relógio D’Água, Lisboa, 2018, p.395.

[11] Ibid., p.396.

[12] Jean Clottes e David Lewis-Williams, Los chamanes…op. cit., p.89.

[13] Ibid., p. 91.

[14] José Gil, op. cit., p.396.

[15] Salomé Lopes Coelho, O gesto da travessia e o contacto com o ritmo vital. Sobrevivências do ekstasis no cinema, Tese de Doutoramento em Estudos Artísticos, apresentada na Universidade Nova de Lisboa, 2021.

[16] Georges Didi-Huberman, Ninfa moderna. Essai sur le drapé tombé, Gallimard, Paris.

[17] Peter Gow, op. cit., 2002.

[18] Ayahuasca não é um tema unívoco, pode assumir diferentes nomes dependendo da região amazónica, distintos géneros gramaticais, diferentes combinações com outras plantas, e enquadramentos cosmológicos variáveis (xamânico, católico, etc.). Aqui seguimos a leitura de Gow.

[19] Peter Gow, op. cit., p.46.

[20] Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, Trad. Beatriz Perrone-Moisés, Companhia das Letras, São Paulo, 2015. Uma vez que, doravante, todas as citações se referem a esta edição, usarei apenas o número da página entre parêntesis.

Ainda que não seja o mais significativo, Gow refere-se ao cinema e às visões xamânicas como um movimento de aproximação de imagens distantes; A queda do céu sugere um movimento de tornar presente os mundos no corpo do xamã, mas também de levar a imagem do xamã para longe: “Morremos bebendo o pó da árvore yãkoana hi, para que os xapiri levem nossa imagem para longe. Assim podemos ver terras muito distantes, subir para o peito do céu ou descer ao mundo subterrâneo.” (p.459)

[21] Como destaca Sebastian Wiedemann, “a noção de utupë se apresenta como conceito, pois ela se afirma como um hiper-conglomerado de relações que dinamicamente condensam uma qualidade de vórtice e vector para o pensamento”. Ver Sebastian Wiedemann, “Em direção a uma cosmopolítica da imagem: notas para uma possível ecologia das práticas cinematográficas”, Revista Arteriais, V.6, n.10, 2020, p.112.

[22] Eduardo Viveiros de Castro esclarece que xapiri não diz respeito a um tipo de seres ou a uma categoria estável, antes aponta para “a síntese disjuntiva entre o humano e o não-humano”, para uma “região ou momento de indiscernibilidade entre o humano e o não-humano”. Ver Eduardo Viveiros de Castro, “La selva de cristal: notas sobre la ontología de los espíritus amazónicos”, Amazonía Peruana, Tomo XV, N.30, 2007, p.319-321.

[23] André Brasil, “Ver por meio do invisível. O cinema como tradução xamânica”, Revista Novos Estudos, V35.03, 2016, p.144.

[24] Eduardo Viveiros de Castro, “La selva de cristal…”, op. cit., p.93.

[25] Marco António Valentim cit. por Sebastian Wiedemann, “Em direção a uma cosmopolítica…”, op. cit., p.111.

[26] Este processo de iniciação é indissociável do esforço, da atenção, do padecimento e do terror, como dá conta o capítulo 5, A iniciação. Evelyn Schuler e Alfredo Zea distinguem neste processo um “início da iniciação”, prévio ao aparecimento dos xapiri, caracterizado pela sucessiva desestabilização dos pressupostos de pertença, saber e relação. Ver Evelyn Schuler e Alfredo Zea, “El inicio de la iniciación y el movimiento de las partes”, ClimaCom Cultura Científica – pesquisa, jornalismo e arte Ι, N.10, 2017.

[27] Eduardo Viveiros de Castro, “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”, Mana, Vol.2, N.2, 1996.

[28] Rodrigo Lacerda, Animism and the Mbya-Guarani Cinema, Royal Anthropological Institute, 2021, p.4.

[29] Ibid., p.3.

[30] Eduardo Viveiros de Castro, “La selva de cristal…”, op. cit., p.320.

[31] Citado por Luiz Bolognesi, no depoimento “O cineasta e o xamã”, Piauí – Folha de S. Paulo, 5 de julho de 2021, em linha, https://piaui.folha.uol.com.br/o-cineasta-e-o-xama

[32] Béla Balázs, “Der Sichtbaremensch (O homem invisível)”, Trad. João Luiz Vieira, In Ismail Xavier (Ed.), A experiência do cinema, Graal, Rio de Janeiro, 1983, p.82.

[33] Cf. Jacques Rancière, Os Intervalos do cinema, Trad. Luís Lima, Orfeu Negro, Lisboa, 2012, p.24.

[34] Ver, por exemplo, Ana Carolina Estrela da Costa, Cosmopolíticas, olhar e escuta: experiências cine-xamânicas entre os Maxakali, Dissertação de Mestrado em Antropologia, apresentada na Universidade Federal de Minas Gerais, 2015; André Brasil e Bernard Belisário, “Desmanchar o cinema: variações do fora-de-campo em filmes indígenas”, Sociologia & Antropologia, 6(3), 2016; Rodrigo Lacerda, op. cit.; Ruben Caixeta de Queiroz, “Cineastas indígenas e pensamento selvagem”, Devires, V.5, N.2, 2008.

[35] No sentido conferido por Agamben. Ver Giorgio Agamben, Means without end. Notes on politics, University of Minnesota Press, Minneapolis/Londres, 2000.

[36] Béla Balázs, “A subjetividade do objeto”, Trad. João Luiz Vieira, In Ismail Xavier (Ed.), op. cit., p.97.

[37] Ana Carolina Estrela da Costa, “Continuidades, ruturas, desdobramentos: conexões entre cinema indígena, pensamento e xamanismo”, Iluminuras, V19, N.46, 2018.

[38] Ibid., p.107.

[39] Ana Carolina Estrela da Costa, Cosmopolíticas…, op.cit.,5, p.146.

[40] Jean Rouch, “On the Vicissitudes…”, op. cit., p.99.

[41] Ibidem.

[42]  Bernard Belisário, “Os Itseke e o fora-de-campo no cinema Kuikuro”, Devires, V.11, N.2, 2014, p.115.

[43] Jean Rouch, “On the Vicissitudes…”, op. cit., p.101.

[44] João Mário Grilo, “Propositions for a Gestural Cinema: On ‘Ciné-Trances’ and Jean Rouch’s Ritual Documentaries” In Henrik Gustafsson e Asbjørn Grønstad (Eds.), Cinema and Agamben. Ethics, biopolitics and the moving image, Bloomsbury, Londres/Nova Iorque, 2014, p.133.

[45] Ibid., p.128.

[46] Atribuir ao cinema o poder de dar a ver a verdade, a realidade, a vida em si mesma, é algo que vários autores fizeram desde as origens do cinema e da sua teorização. Béla Balázs, por exemplo, entende que a câmara “revelou novos mundos até então escondidos” (p.84), permitindo aceder às “forças ocultas de uma vida que pensávamos conhecer tão bem” (p.89). Ver Balázs, “Nós estamos no filme”, Trad. João Luiz Vieira In Ismail Xavier (Ed.), A experiência do cinema, op. cit.

[47] Jean Rouch, “On the Vicissitudes…”, op. cit., p.46.

[48] Ibid., p.13.

[49] Não sem contradições, como problematiza Ruben Caixeta de Queiroz, “Cineastas …”, op. cit.

[50] Dominique Gallois e Vincent Carelli, “Vídeo e diálogo cultural: experiência do Projeto Vídeo nas Aldeias”, Horizontes Antropológicos, N.2, 1995, p.67.

[51] Ver investigações mencionadas na nota 34.

[52] Henri Bergson, Materia y Memoria. Ensayo sobre la relación del cuerpo con el espíritu, Cactus, Buenos Aires, 2006, p.52.

[53] Sebastian Wiedemann, op. cit., p.112.

[54] Ibid., p.116.